quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Síndrome de Wilkomirski: História Falsificada (III)




(Continuação)

O ambiente receptivo

Esses impressionantes sucessos não são imagináveis sem um contexto receptivo, ou até uma procura ansiosa por histórias desse tipo. Inclui-se, nesse contexto, todo o aparato cultural e científico que se dedica ao Holocausto: as editoras, os meios de comunicação, os psicólogos e os historiadores. Todos eles se dedicam à memória e à escrita da História.

A editora Suhrkamp se manteve num profundo silêncio após o desmascaramento. A edição de capa dura estava quase totalmente vendida e a de bolso continuou a ser vendida até o final, sem maiores comentários. Quando a editora soube das dúvidas sobre a autenticidade, ainda antes da publicação, pressionou Wilkomirski a fazer uma declaração sobre a veracidade de seu relato. Wilkomirski escreveu, num posfácio pouco consistente que entraria na justiça contra o fato de ter recebido, depois da guerra, uma outra identidade, sem seu consentimento. E acrescentou: “A verdade sancionada pela justiça é uma coisa, a verdade de uma vida é outra”. 13 Essa afirmação pode ser entendida da seguinte forma: a verdadeira identidade deve ser uma falsificação e a identidade falsificada deve ser a verdadeira.

Seu editor nos Estados Unidos, Arthur Samuelson, da Schocken Books, declarou que a diferença entre facts and fiction não interessava. Segundo ele, Fragments “is a pretty cool book… It’s only a fraud if you will call it non-fiction. I would then reissue it, in the fiction category. Maybe it’s not true – then he’s a better writer!”14 Não é o autor que falsifica, mas sim o leitor, quando afirma que no caso de Fragmentos se trata de um relato factual.

Suspeita também foi a aprovação dos historiadores após a publicação do livro. Daniel Goldhagen declarou: “Esse fascinante livro traz ensinamentos inclusive para aqueles que estão familiarizados com a bibliografia sobre o Holocausto. Ele atingirá profundam
ente a todos”.15 Também o diretor do Centro de Pesquisa do Anti-semitismo, em Berlim, Wolfgang Benz, declarou: “Um relato que fornece ao leitor um acesso à complexa tragédia, de uma forma superior a qualquer outro documento”. Só Raul Hilberg, desde o início, considerou que o livro não merecia crédito. “Eu diria, que esse livro, na forma em que está escrito, se localiza em algum lugar entre um máximo de improbabilidade e a total impossibilidade”.16 Também Claude Lanzmann, diretor do filme Shoa, considerou que o livro não merecia crédito. Mas, da mesma forma que Hilberg, não deu muita publicidade às suas dúvidas. Hilberg queria, primeiro,
ler o livro em alemão, e Lanzmann temia um escândalo. O livro “me entediou demais”, disse Lanzmann. “É um livro ... absolutamente frio. Não é sério e não tem qualquer estrutura”.17 Assim, enquanto a falsificação era publicamente louvada, as manifestações de reserva foram apenas tácitas.

Suspeito também foi o papel de vários psicólogos. A revista psicoanalítica alemã Psyche proclamou Wilkomirski um herói psicológico-literário. “Os poetas concedem a seus heróis a graça do esquecimento através da derrota ou através da morte. A realidade parece ser menos benevolente. Binjamin não morre, não chora, ele fica obrigado a rememorar. No entanto, a estranha melodia do livro consiste num único soluço e numa única lamentação. Seu choro é prosa”.18

Quando o escândalo se tornou público, o que mais se discutiu foi sobre as razões que teriam levado Bruno Dössekker a assumir a máscara de Binjamin Wilkomirski. Foram apresentadas desculpas a seu favor: ele seria supersensível, frágil ou até doente. Contra
Ganzfried, se argumentou que o desmascaramento feito friamente, em público, visaria à destruição de Dössekker, e poderia levá-lo ao suicídio.

A comunidade científica foi enganada em vários congressos pela pseudociência de Elitsur Bernstein, segundo a qual uma reconstituição histórica seria possível através de memórias da primeira infância. Essa comunidade também se deixou impressionar com o fato de que Bernstein agia como um curandeiro, carregando consigo seu paciente e exibindo-o em público. E a opinião pública, por sua vez, esteve extremamente predisposta a cumular o autor com prêmios.

De onde vinha essa disposição parailudir e auto-iludir-se? Segundo Pascal Bruckner, essa disposição faz parte de uma tendência dominante de sentir-se atraído pela aura da inocência19 e de transformar a vítima num objeto de identificação positivo. Essa tendência desemboca – na opinião do psiquiatra Hans Stoffels – no fascínio pelo trauma.20 Desde 1980, as publicações sobre o tema trauma espiritual vêm se multiplicando, e não mais se buscam as origens de traumas apenas em vivências dentro de campos de concentração e em meio a guerras civis, mas também em acidentes no cotidiano. O assim chamado stress pós-traumático (PTSD) foi proclamado uma “nova doença popular, à semelhança do diabetes e da pressão alta”.21

Essa inclinação para a autovitimização explica o interesse do público por Benjamin Wilkomirski. Não se trata apenas de tentar entender as vítimas e utilizar sua perspectiva para um confronto crítico, mas trata-se de colocar-se no mesmo nível das vítimas. Isso pode levar a ações absurdas, como a da idealizadora do Memorial do Holocausto, em Berlim, Lea Rosh, que, não sendo judia, assumiu aos 18 anos o prenome judeu, e lidava com o Memorial como se fosse sua propriedade privada – ainda que contra a vontade das organizações judaicas. De forma patética, ela declarou ser capaz de imaginar muito bem como é ser assassinado. E na inauguração do Memorial, ela causou indignação, quando quis enterrar no local o dente molar que, supostamente, fora de um judeu assassinado, e que ela achara e trouxera, alguns anos atrás, do campo de extermínio de Belczec.

Essa luta pela autoinclusão entre as vítimas também atinge a “segunda geração” dos sobreviventes. Nos meios ligados à cultura terapêutica norte-americana, se observa – segundo a jornalista Ruth Franklin – uma tendência em considerar as eventuais feridas da própria infância como muito mais graves do que as vivências reais dos antepassados. Através de “complicadas manobras pósmodernas, pós-estruturalistas e através de teorias traumatológicas”, essas pessoas seriam capazes de se transportar para as experiências do Holocausto, e reivindicar a mesma autenticidade e a mesma importância que seus pais. Daí teria surgido uma literatura de entretenimento “neo-wilkomirskiana”, que estaria remetendo as experiências verdadeiras para um segundo plano. Seria a tentativa de buscar a “glória a partir do trauma” presente na atual cultura norte-americana, que levaria essa nova geração a esse tipo de estratégia. 22

Por que se fazem falsificações? É por que se trata de pessoas fracas, merecedoras de comiseração, ou até de pessoas traumatizadas? De forma alguma. Hans Stoffels chama a atenção para o fato de que a psiquiatria mais antiga já conhecia um conceito apropriado para esse fenômeno, o da “Pseudologia Phantastica”, e que entre os ilusionistas e os mentirosos patológicos apresenta, sobretudo, duas características: primeiro, “um enorme esforço para obter posições de destaque e reconhecimento, motivado pelo desejo insaciável de aumentar seu valor próprio; e, segundo, ... uma descomunalmente forte capacidade para a fantasia, às vezes, muito original, com um série de visões muito concretas e idéias bem conectadas, eventualmente derivadas de efeitos externos, como romances ou o cinema”.23 Ao contrário daqueles que ficam sonhando ou aqueles que transformam sua enorme fantasia em atividade literária, os ilusionistas patológicos impõem – com sua grande capacidade de enganar – sua fantasia àqueles que estão ao seu redor, passando a exercer papéis reais e, possivelmente, vêm a perder a noção de sua verdadeira situação. Dössekker já apresentava ataques epilépticos na escola, e eles se manifestavam através de representações muito bem executada.


As vantagens da mentira em relação à verdade

A tentação de falsificar costuma ser potencializada pelo fato de que a mentira, ao contrário da verdade, possui uma força criativa. Hannah Arendt, por ocasião das discussões em torno de seu
livro sobre Eichmann em Jerusalém e as controvérsias em torno dele, descreveu o que efetivamente é a verdade, e quais são as vantagens da mentira sobre a verdade. Ela distinguiu entre três tipos de discurso: mentir, dizer a verdade, e dar destaque a determinadas realidades em favor do interesse de um grupo. No primeiro caso, segundo Arendt, o mentir sempre constitui “em primeiro lugar, uma ação”, enquanto o dizer a verdade não o é. O dizer a verdade
é algo totalmente independente, e por isso sua posição dentro da discussão pública e da política é complicada. Pois, “na vida política praticamente não existe um tipo humano que desencadeie dúvidas tão fortes sobre sua veracidade quanto aquele que deve dizer a verdade por razões profissionais, que sugere representar uma harmonia preestabelecida entre interesses e verdade. Em contrapartida, aquele que mente não precisa recorrer a meios tão duvidosos para atingir seus fins políticos. Ele tem a vantagens de estar sempre em meio à política. Seja lá o que ele disser, não se trata apenas de algo dito, mas de uma ação. Ele diz o que não é, porque
deseja modificar aquilo que é. Ele é o grande beneficiário do inegável parentesco entre a capacidade humana de modificar as coisas e a misteriosa capacidade de dizer ‘o sol brilha’, enquanto lá fora está chovendo aos cântaros”.24

Não se acredita naquele que diz a “verdade por profissão”, porque tanto a verdade quanto o dizer a verdade correm perigo tão logo interesses entram em jogo. A aparente harmonia entre verdade e interesse é praticamente impossível – e isso não acontece só na esfera política. Nós vimos como o interesse de uma geração consegue não só manipular a verdade, mas também modificar a verdade em sua totalidade.

Depois de anos de silêncio, tanto de parte dos carrascos quanto das vítimas, a verdade passa agora a ser manipulada pela força dos interesses em jogo. E essa situação se complica com os acréscimos que vão desde o autoludibriamento até o ludibriamento dos outros. Isso não significa só que – como diz Hannah Arenndt – “o mentiroso se transforma tanto mais fácil em vítima
de suas próprias mentiras quão mais bem sucedido ele se mostra na sua difusão pelo mundo”, mas “que o ludibriador, exatamente por acreditar nas suas próprias mentiras, parece merecer muito mais crédito do que aquele que afirma uma inverdade, de forma consciente e soberana, e com isso arma sua própria arapuca”.25

Wilkomirski foi, sem dúvida, tão bem sucedido por causa da relação simbiótica que estabeleceu com seu público. Ele se entregara de forma total ao papel que se auto-atribuíra, e, da mesma forma, o público estava disposto a entregar-se de forma total ao seu mundo e à sua realidade.

Contrapor-se à corrente dominante e insistir na verdade não representa uma questão moral nem uma questão de distinção entre literatura e um Kitsch sobre o Holocausto ou sobre as vítimas. A defesa da verdade é uma defesa da dignidade e da justiça para todos, para as vítimas, para os leitores e para os falsificadores. De forma alguma, é indiferente qual história se conta, se uma história real ou uma história inventada. O espetáculo proporcionado por Bruno Dössekker se baseava no antigo clichê anti-semita do pobre e judiado judeu, que como uma pessoa fraca serve ao mesmo tempo ao anti-semitismo e a um sentimentalismo meloso. Paul Parks fez seu papel na novela do soldado americano negro que, juntamente com os soldados brancos, derrubou o portão de Dachau. E a literatura de entretenimento da “segunda geração” simula realidades que empurram as memórias reais dos pais para o esquecimento. Testemunhas se transformam em matéria-prima – observou a crítica literária Ruth Klüger –, “em objeto, um objeto desofrimento que é explorado”.26 Todas essas falsificações servem para uma mitificação simplificadora, que destrói a multiplicidade da realidade – uma realidade de ações e de experiências humanas –, em favor de uma simples mentira.

Paul Ricoeur lembrava dos esforços para desmistificar a revolução francesa. O leitor espera – escreveu ele – que o autor lhe apresente uma “narrativa verdadeira”. Entrementes, sabemos que os leitores justamente não esperam isso. O pacto de confiança é rompido por ambos os lados. Por isso, torna-se cada vez mais necessário recorrer àquilo que Ricoeur chama de “confronto dos testemunhos”, sua contestação, sua crítica, num contexto de dissenso, o qual deve transcorrer numa discussão pública, ali onde “a Ciência Histórica, em última análise, cumpre seu sentido”.27 São os leitores – diz Ricoeur –, e dentro dos leitores os cidadãos que através desse debate decidem sobre a verdade do conteúdo.



13 WILKOMIRSKI, op. cit., p. 143.
14 LAPPIN, Elena. The man with two heads. Granta, 66, 1999.
15 Na capa da edição alemã do livro.
16 Raul Hilberg, no programa “60 minutes”, da CBS, em 7 de fevereiro de 1999. Cf.
também: Peskin, Harvey. Holocaust denial: a sequel. The vase of Binjamin Wilkomirski’s
“Fragments” (The Nation, 19 de abril de 1999).
17 LANZMANN, Claude. Der organisierte Übergang zum Vergessen (em entrevista
com Sebastian Hefti e Wolfgang Heuer). In: GANZFRIED, Daniel. … alias
Wilkomirski. Die Holocaust-Travestie (editado por Sebastian Hefti sob encomenda do
Deutschschweizer PEN Zentrum). Berlim: Jüdische Verlagsanstalt, 2002, p. 198.
18 Johannes Dirschauer, em Psyche, no 7, 1998, p. 773.
19 BRUCKNER, Pascal. La tentation de l’innocence. Paris: Livre de Poche, 1995.
20 STOFFELS, Hans. Das Trauma als Faszinosum. Zur Psycho(patho-)logie von
Pseudoerinnerungen und Pseudoidentität. In: DIECKANN, Irene & SCHPOEPS,
Julius H. (eds.). Das Wilkomirski-Syndrom: eingebildete Erinnerungen oder von der
Sehnsucht, Opfer zu sein. Zurique/Munique: Pendo, 2002.
21 Ibid., p. 175.
22 FRANKLIN, Ruth. True memory, false memory, and the identity theft (The New
Republic, 31 de maio de 2004).
23 STOFFELS, loc. cit., p. 167.
24 ARENDT, Hannah. Wahrheit und Politik. In: Zwischen Vergangenheit und Zukunft.
Übungen im politischen Denken I. Munique/Zurique: Piper, 1994, p. 352 e seg. (parte
IV, 2o §).
25 Op. cit., p. 358 (parágrafo anterior àquele que começa com uma citação de Karl
Jaspers).
26 KLÜGER, Ruth. Von hoher und niedriger Kunst. Göttingen: Wallstein, 1996, p. 36.
27 RICOEUR, loc. cit., p. 737.

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