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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Síndrome de Wilkomirski: História Falsificada (III)




(Continuação)

O ambiente receptivo

Esses impressionantes sucessos não são imagináveis sem um contexto receptivo, ou até uma procura ansiosa por histórias desse tipo. Inclui-se, nesse contexto, todo o aparato cultural e científico que se dedica ao Holocausto: as editoras, os meios de comunicação, os psicólogos e os historiadores. Todos eles se dedicam à memória e à escrita da História.

A editora Suhrkamp se manteve num profundo silêncio após o desmascaramento. A edição de capa dura estava quase totalmente vendida e a de bolso continuou a ser vendida até o final, sem maiores comentários. Quando a editora soube das dúvidas sobre a autenticidade, ainda antes da publicação, pressionou Wilkomirski a fazer uma declaração sobre a veracidade de seu relato. Wilkomirski escreveu, num posfácio pouco consistente que entraria na justiça contra o fato de ter recebido, depois da guerra, uma outra identidade, sem seu consentimento. E acrescentou: “A verdade sancionada pela justiça é uma coisa, a verdade de uma vida é outra”. 13 Essa afirmação pode ser entendida da seguinte forma: a verdadeira identidade deve ser uma falsificação e a identidade falsificada deve ser a verdadeira.

Seu editor nos Estados Unidos, Arthur Samuelson, da Schocken Books, declarou que a diferença entre facts and fiction não interessava. Segundo ele, Fragments “is a pretty cool book… It’s only a fraud if you will call it non-fiction. I would then reissue it, in the fiction category. Maybe it’s not true – then he’s a better writer!”14 Não é o autor que falsifica, mas sim o leitor, quando afirma que no caso de Fragmentos se trata de um relato factual.

Suspeita também foi a aprovação dos historiadores após a publicação do livro. Daniel Goldhagen declarou: “Esse fascinante livro traz ensinamentos inclusive para aqueles que estão familiarizados com a bibliografia sobre o Holocausto. Ele atingirá profundam
ente a todos”.15 Também o diretor do Centro de Pesquisa do Anti-semitismo, em Berlim, Wolfgang Benz, declarou: “Um relato que fornece ao leitor um acesso à complexa tragédia, de uma forma superior a qualquer outro documento”. Só Raul Hilberg, desde o início, considerou que o livro não merecia crédito. “Eu diria, que esse livro, na forma em que está escrito, se localiza em algum lugar entre um máximo de improbabilidade e a total impossibilidade”.16 Também Claude Lanzmann, diretor do filme Shoa, considerou que o livro não merecia crédito. Mas, da mesma forma que Hilberg, não deu muita publicidade às suas dúvidas. Hilberg queria, primeiro,
ler o livro em alemão, e Lanzmann temia um escândalo. O livro “me entediou demais”, disse Lanzmann. “É um livro ... absolutamente frio. Não é sério e não tem qualquer estrutura”.17 Assim, enquanto a falsificação era publicamente louvada, as manifestações de reserva foram apenas tácitas.

Suspeito também foi o papel de vários psicólogos. A revista psicoanalítica alemã Psyche proclamou Wilkomirski um herói psicológico-literário. “Os poetas concedem a seus heróis a graça do esquecimento através da derrota ou através da morte. A realidade parece ser menos benevolente. Binjamin não morre, não chora, ele fica obrigado a rememorar. No entanto, a estranha melodia do livro consiste num único soluço e numa única lamentação. Seu choro é prosa”.18

Quando o escândalo se tornou público, o que mais se discutiu foi sobre as razões que teriam levado Bruno Dössekker a assumir a máscara de Binjamin Wilkomirski. Foram apresentadas desculpas a seu favor: ele seria supersensível, frágil ou até doente. Contra
Ganzfried, se argumentou que o desmascaramento feito friamente, em público, visaria à destruição de Dössekker, e poderia levá-lo ao suicídio.

A comunidade científica foi enganada em vários congressos pela pseudociência de Elitsur Bernstein, segundo a qual uma reconstituição histórica seria possível através de memórias da primeira infância. Essa comunidade também se deixou impressionar com o fato de que Bernstein agia como um curandeiro, carregando consigo seu paciente e exibindo-o em público. E a opinião pública, por sua vez, esteve extremamente predisposta a cumular o autor com prêmios.

De onde vinha essa disposição parailudir e auto-iludir-se? Segundo Pascal Bruckner, essa disposição faz parte de uma tendência dominante de sentir-se atraído pela aura da inocência19 e de transformar a vítima num objeto de identificação positivo. Essa tendência desemboca – na opinião do psiquiatra Hans Stoffels – no fascínio pelo trauma.20 Desde 1980, as publicações sobre o tema trauma espiritual vêm se multiplicando, e não mais se buscam as origens de traumas apenas em vivências dentro de campos de concentração e em meio a guerras civis, mas também em acidentes no cotidiano. O assim chamado stress pós-traumático (PTSD) foi proclamado uma “nova doença popular, à semelhança do diabetes e da pressão alta”.21

Essa inclinação para a autovitimização explica o interesse do público por Benjamin Wilkomirski. Não se trata apenas de tentar entender as vítimas e utilizar sua perspectiva para um confronto crítico, mas trata-se de colocar-se no mesmo nível das vítimas. Isso pode levar a ações absurdas, como a da idealizadora do Memorial do Holocausto, em Berlim, Lea Rosh, que, não sendo judia, assumiu aos 18 anos o prenome judeu, e lidava com o Memorial como se fosse sua propriedade privada – ainda que contra a vontade das organizações judaicas. De forma patética, ela declarou ser capaz de imaginar muito bem como é ser assassinado. E na inauguração do Memorial, ela causou indignação, quando quis enterrar no local o dente molar que, supostamente, fora de um judeu assassinado, e que ela achara e trouxera, alguns anos atrás, do campo de extermínio de Belczec.

Essa luta pela autoinclusão entre as vítimas também atinge a “segunda geração” dos sobreviventes. Nos meios ligados à cultura terapêutica norte-americana, se observa – segundo a jornalista Ruth Franklin – uma tendência em considerar as eventuais feridas da própria infância como muito mais graves do que as vivências reais dos antepassados. Através de “complicadas manobras pósmodernas, pós-estruturalistas e através de teorias traumatológicas”, essas pessoas seriam capazes de se transportar para as experiências do Holocausto, e reivindicar a mesma autenticidade e a mesma importância que seus pais. Daí teria surgido uma literatura de entretenimento “neo-wilkomirskiana”, que estaria remetendo as experiências verdadeiras para um segundo plano. Seria a tentativa de buscar a “glória a partir do trauma” presente na atual cultura norte-americana, que levaria essa nova geração a esse tipo de estratégia. 22

Por que se fazem falsificações? É por que se trata de pessoas fracas, merecedoras de comiseração, ou até de pessoas traumatizadas? De forma alguma. Hans Stoffels chama a atenção para o fato de que a psiquiatria mais antiga já conhecia um conceito apropriado para esse fenômeno, o da “Pseudologia Phantastica”, e que entre os ilusionistas e os mentirosos patológicos apresenta, sobretudo, duas características: primeiro, “um enorme esforço para obter posições de destaque e reconhecimento, motivado pelo desejo insaciável de aumentar seu valor próprio; e, segundo, ... uma descomunalmente forte capacidade para a fantasia, às vezes, muito original, com um série de visões muito concretas e idéias bem conectadas, eventualmente derivadas de efeitos externos, como romances ou o cinema”.23 Ao contrário daqueles que ficam sonhando ou aqueles que transformam sua enorme fantasia em atividade literária, os ilusionistas patológicos impõem – com sua grande capacidade de enganar – sua fantasia àqueles que estão ao seu redor, passando a exercer papéis reais e, possivelmente, vêm a perder a noção de sua verdadeira situação. Dössekker já apresentava ataques epilépticos na escola, e eles se manifestavam através de representações muito bem executada.


As vantagens da mentira em relação à verdade

A tentação de falsificar costuma ser potencializada pelo fato de que a mentira, ao contrário da verdade, possui uma força criativa. Hannah Arendt, por ocasião das discussões em torno de seu
livro sobre Eichmann em Jerusalém e as controvérsias em torno dele, descreveu o que efetivamente é a verdade, e quais são as vantagens da mentira sobre a verdade. Ela distinguiu entre três tipos de discurso: mentir, dizer a verdade, e dar destaque a determinadas realidades em favor do interesse de um grupo. No primeiro caso, segundo Arendt, o mentir sempre constitui “em primeiro lugar, uma ação”, enquanto o dizer a verdade não o é. O dizer a verdade
é algo totalmente independente, e por isso sua posição dentro da discussão pública e da política é complicada. Pois, “na vida política praticamente não existe um tipo humano que desencadeie dúvidas tão fortes sobre sua veracidade quanto aquele que deve dizer a verdade por razões profissionais, que sugere representar uma harmonia preestabelecida entre interesses e verdade. Em contrapartida, aquele que mente não precisa recorrer a meios tão duvidosos para atingir seus fins políticos. Ele tem a vantagens de estar sempre em meio à política. Seja lá o que ele disser, não se trata apenas de algo dito, mas de uma ação. Ele diz o que não é, porque
deseja modificar aquilo que é. Ele é o grande beneficiário do inegável parentesco entre a capacidade humana de modificar as coisas e a misteriosa capacidade de dizer ‘o sol brilha’, enquanto lá fora está chovendo aos cântaros”.24

Não se acredita naquele que diz a “verdade por profissão”, porque tanto a verdade quanto o dizer a verdade correm perigo tão logo interesses entram em jogo. A aparente harmonia entre verdade e interesse é praticamente impossível – e isso não acontece só na esfera política. Nós vimos como o interesse de uma geração consegue não só manipular a verdade, mas também modificar a verdade em sua totalidade.

Depois de anos de silêncio, tanto de parte dos carrascos quanto das vítimas, a verdade passa agora a ser manipulada pela força dos interesses em jogo. E essa situação se complica com os acréscimos que vão desde o autoludibriamento até o ludibriamento dos outros. Isso não significa só que – como diz Hannah Arenndt – “o mentiroso se transforma tanto mais fácil em vítima
de suas próprias mentiras quão mais bem sucedido ele se mostra na sua difusão pelo mundo”, mas “que o ludibriador, exatamente por acreditar nas suas próprias mentiras, parece merecer muito mais crédito do que aquele que afirma uma inverdade, de forma consciente e soberana, e com isso arma sua própria arapuca”.25

Wilkomirski foi, sem dúvida, tão bem sucedido por causa da relação simbiótica que estabeleceu com seu público. Ele se entregara de forma total ao papel que se auto-atribuíra, e, da mesma forma, o público estava disposto a entregar-se de forma total ao seu mundo e à sua realidade.

Contrapor-se à corrente dominante e insistir na verdade não representa uma questão moral nem uma questão de distinção entre literatura e um Kitsch sobre o Holocausto ou sobre as vítimas. A defesa da verdade é uma defesa da dignidade e da justiça para todos, para as vítimas, para os leitores e para os falsificadores. De forma alguma, é indiferente qual história se conta, se uma história real ou uma história inventada. O espetáculo proporcionado por Bruno Dössekker se baseava no antigo clichê anti-semita do pobre e judiado judeu, que como uma pessoa fraca serve ao mesmo tempo ao anti-semitismo e a um sentimentalismo meloso. Paul Parks fez seu papel na novela do soldado americano negro que, juntamente com os soldados brancos, derrubou o portão de Dachau. E a literatura de entretenimento da “segunda geração” simula realidades que empurram as memórias reais dos pais para o esquecimento. Testemunhas se transformam em matéria-prima – observou a crítica literária Ruth Klüger –, “em objeto, um objeto desofrimento que é explorado”.26 Todas essas falsificações servem para uma mitificação simplificadora, que destrói a multiplicidade da realidade – uma realidade de ações e de experiências humanas –, em favor de uma simples mentira.

Paul Ricoeur lembrava dos esforços para desmistificar a revolução francesa. O leitor espera – escreveu ele – que o autor lhe apresente uma “narrativa verdadeira”. Entrementes, sabemos que os leitores justamente não esperam isso. O pacto de confiança é rompido por ambos os lados. Por isso, torna-se cada vez mais necessário recorrer àquilo que Ricoeur chama de “confronto dos testemunhos”, sua contestação, sua crítica, num contexto de dissenso, o qual deve transcorrer numa discussão pública, ali onde “a Ciência Histórica, em última análise, cumpre seu sentido”.27 São os leitores – diz Ricoeur –, e dentro dos leitores os cidadãos que através desse debate decidem sobre a verdade do conteúdo.



13 WILKOMIRSKI, op. cit., p. 143.
14 LAPPIN, Elena. The man with two heads. Granta, 66, 1999.
15 Na capa da edição alemã do livro.
16 Raul Hilberg, no programa “60 minutes”, da CBS, em 7 de fevereiro de 1999. Cf.
também: Peskin, Harvey. Holocaust denial: a sequel. The vase of Binjamin Wilkomirski’s
“Fragments” (The Nation, 19 de abril de 1999).
17 LANZMANN, Claude. Der organisierte Übergang zum Vergessen (em entrevista
com Sebastian Hefti e Wolfgang Heuer). In: GANZFRIED, Daniel. … alias
Wilkomirski. Die Holocaust-Travestie (editado por Sebastian Hefti sob encomenda do
Deutschschweizer PEN Zentrum). Berlim: Jüdische Verlagsanstalt, 2002, p. 198.
18 Johannes Dirschauer, em Psyche, no 7, 1998, p. 773.
19 BRUCKNER, Pascal. La tentation de l’innocence. Paris: Livre de Poche, 1995.
20 STOFFELS, Hans. Das Trauma als Faszinosum. Zur Psycho(patho-)logie von
Pseudoerinnerungen und Pseudoidentität. In: DIECKANN, Irene & SCHPOEPS,
Julius H. (eds.). Das Wilkomirski-Syndrom: eingebildete Erinnerungen oder von der
Sehnsucht, Opfer zu sein. Zurique/Munique: Pendo, 2002.
21 Ibid., p. 175.
22 FRANKLIN, Ruth. True memory, false memory, and the identity theft (The New
Republic, 31 de maio de 2004).
23 STOFFELS, loc. cit., p. 167.
24 ARENDT, Hannah. Wahrheit und Politik. In: Zwischen Vergangenheit und Zukunft.
Übungen im politischen Denken I. Munique/Zurique: Piper, 1994, p. 352 e seg. (parte
IV, 2o §).
25 Op. cit., p. 358 (parágrafo anterior àquele que começa com uma citação de Karl
Jaspers).
26 KLÜGER, Ruth. Von hoher und niedriger Kunst. Göttingen: Wallstein, 1996, p. 36.
27 RICOEUR, loc. cit., p. 737.

domingo, 23 de agosto de 2009

A Síndrome de Wilkomirski: História Falsificada (II)



(Continuação)


Wilkomirski

A história mais intrigante, porém, é a de Binjamin Wilkomirski, que publicou o livro Fragmentos. Nesse livro, o autor relata como chegou aos campos de concentração Majdanek e Auschwitz, sobreviveu ao extermínio, e como, depois da guerra, viveu num abrigo de crianças, até que, graças a uma organização humanitária, chegasse à Suíça. Ali viveu mais uma vez num abrigo de crianças, até que fosse adotado por um rico casal de médicos de Zurique. Em 1995, editores judeus publicaram na conhecida e influente editora Suhrkamp, da Alemanha, as memórias de Wilkomirski, as quais, em função dos detalhes e da brutalidade do relato, superavam tudo aquilo que se conhecia até então. Mesmo que o autor tivesse apenas três anos, na época dos acontecimentos, lembrava-se do assassinato do pai, no gueto, com uma clareza fotográfica: “Agentes uniformizados, vestindo botas, gritam com ele, o levam pela porta. Um grito de medo ecoa pela escadaria: ‘Atenção! Milícia leta!’. Portas batem. O homem é levado para baixo. Eu vou atrás; me grudo no corrimão e vou descendo. [...]. Colocaram o homem na parede, ao lado da entrada. Aos gritos, os uniformizados embarcam num automóvel estacionado na rua, gesticulam, agitam os porretes e deformam seus rostos numa expressão de ódio. Gritam sempre a mesma coisa, que soa como ‘acabam com ele! acabam com ele!’. O automóvel se põe em movimento. Acelera em direção à parede, em direção a nós. O homem continua imóvel, encostado na parede, perto de mim. Estou sentado o chão, entre a porta e a parede, os olhos voltados para ele. Ele baixa os olhos para mim e abre um sorriso. Mas, de repente, seu rosto se desfigura, ele o vira para o lado, levanta a cabeça, abre a boca, como se quisesse soltar um grito. Lá de baixo, contra a claridade do céu só consigo enxergar ainda os contornos de seu queixo e o chapéu, que resvala para trás. Nenhum grito ecoa de sua boca, mas um jato preto sai de sua garganta, quando o automóvel o imprensa contra a parede”.7



A criança também se lembra com a mesma exatidão das mulheres mortas no campo de extermínio: “Algo desperta minha curiosidade, mas a montanha de cadáveres continua ali, como sempre. Ou será que algo mudou de lugar? Estranho, mulheres mortas não podem mover-se! [...]. Mas algo se movimenta! A barriga se movimenta! Não ouso levantar e não consigo mais tirar os olhos dali. Fico olhando, incrédulo. De joelhos, vou me aproximando.
Que é que está acontecendo? [...]. Agora vejo a barriga toda. Numa enorme ferida lateral, algo está se mexendo. Me ergo, para ver melhor. Estico meu pescoço e, nesse momento, a ferida se abre, repentinamente, a tampa da barriga se levanta e um enorme rato ensangüentado, brilhoso resvala pela montanha de cadáveres. Outros ratos alvorotados saem do amontoado de cadáveres e fogem”.8


Enquanto todas as outras crianças dos campos de extermínio são mortas, Wilkomirski sobrevive. Primeiro, o campo de Majdanek, depois, um transporte ferroviário, incluindo um acidente, para Auschwitz-Birkenau, e, finalmente, também este último campo. No abrigo de crianças, na Suíça, por fim, seu nome é trocado de forma não esclarecida, e ele passa a chamar-se Bruno Grosjean e, depois da adoção, Bruno Dössekker. Ele estuda História e aprende a construir instrumentos musicais, vindo a trabalhar como professor de música. Aos 18 anos, conta sua história a uma amiga que vem da Letônia e passa a estudar intensamente a história do Holocausto. No início dos anos 1980, fica muito doente de um mal do sangue e afirma que se trata de uma conseqüência tardia das experiências médicas a que fora submetido em Majdanek. Sua segunda esposa dá testemunho sobre a forma em que as memórias traumáticas estão voltando. Ele procura uma terapeuta e também conhece o psicoterapeuta judeu Elitsur Bernstein, e ambos o incentivam a escrever sua história.

Na Neue Zürcher Zeitung, o pequeno livro foi louvado com substantivos como “densidade, imutabilidade e força imagética” e como “fardo do século”. O texto foi traduzido para nove línguas, Wilkomirski recebeu vários prêmios, entre os quais o “Jewish Quartely Literacy Prize”, da Grã-Bretanha, o “National Jewish Book Award”, dos Estados Unidos, e o “Prix Mémoire de la Shoah”, da França. Também a cidade de Zurique homenageou seu filho. Wilkomirski foi convidado para vários eventos, nos quais sua presençainvariavelmente abalava os ouvintes. Wilkomirski apresentou-se como alguém alquebrado, profundamente entristecido, que não conseguia mais ler ele próprio passagens de seu livro, mas alguém lia por ele, leitura acompanhada da execução de cânticos judaicos ao clarinete. Mas Wilkomirski não se preocupou só consigo mesmo. Ele queria ajudar outras pessoas. Juntamente com seu amigo Bernstein, apresentou em diversos congressos científicos um método terapêutico próprio. Através da combinação entre Psicoterapia e Ciência Histórica, esse método se propõe a despertar a memória da primeira infância, e com isso ajudar a todas aquelas pessoas que têm dúvidas sobre suas origens a esclarecer sua identidade. A seguir, ele começou a incluir outras pessoas em sua biografia e em suas apresentações públicas. Em Israel foi achado seu pai. O retorno do filho pródigo ficou registrado em imagens no filme “A lista de Vanda”.9

Entre as muitas cartas que Wilkomirski recebeu, achava-se uma de uma tal de Laura Grabowski, de Los Angeles. Também ela sobreviveu a Auschwitz, com a idade de quatro anos, e só em meados de 1997 conseguiu reunir forças para juntar-se a um “Holocaust Child Survivors Group”. Wilkomirski a encontrou em um evento no dia da memória do Holocausto de 1998, na sinagoga de Beverly Hills. Wilkomirski tocou clarinete, Grabowski piano. No final do encontro, declarou à BBC que ele a reconheceu.10

Ainda antes de o livro de Wilkomirski ser editado, houve dúvidas sobre a veracidade do conteúdo. O jornal suíço Weltwoche encarregou o escritor judeu Daniel Ganzfried a fazer uma investigação. Ele leu o livro, considerou-o totalmente inverossímil, e em muito pouco tempo descobriu a identidade de Bruno Dössekker.11

Simultaneamente, foi desmascarada a identidade falsificada de Laura Grabowski, a qual desapareceu. Não se tratava de sua primeira falsificação. Em meados dos anos 1980, ela se apresentara como Laura Stratford, com um livro-revelação intitulado Satan’s underground, na época em que se discutia nos Estados Unidos sobre uma suposta onda de maus tratos a crianças e de cultos satânicos. 12 No livro, relata como ela, aos seis anos, na qualidade de filha adotiva, fora entregue, por sua mãe, durante meses, a estupradores e depois deixada com um grupo que se dedicava à pornografia infantil. Ali, ela ficara presa durante semanas numa caixa juntamente com cadáveres de crianças, até que se declarasse disposta a participar do sacrifício ritual de crianças. Ela gerou três filhos, que foram assassinados diante dela durante a produção de filmes e em cerimônias rituais. Seu livro com essas histórias de horrores teve 140.000 exemplares vendidos nos Estados Unidos, e a nação chorava juntamente com ela em igrejas e na televisão. Quando as dúvidas sobre sua história começaram a aumentar, ela desapareceu, para reaparecer alguns anos depois, como sobrevivente do Holocausto. Seu verdadeiro nome é Lauren Willson.



7 WILKOMIRSKI, Binjamin. Bruchstücke: aus einer Kindheit, 1939-1948. Frankfurt:
Suhkamp, 1995, p. 9 e seg.

8 Ibid., p. 80 e seg.
9 “Reshimot Vanda”, de Vered Berman, Estado de Israel, 1995.
10 “Child of the death camps: truth & lies” (BBC-TV, 1999).
11 GANZFRIED, Daniel. Die geliehene Holocaust-Biographie. Die Weltwoche, n. 35, de
27 de agosto de 1998.
12 PASSANTINO, Bob & GRETCHEN; Trott, Jon. Lauren Stratford: from satanic ritual
abuse to Jewish Holocaust survivor. Cornstone, vol. 28, n. 117, 1999.



(Continua)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A Síndrome de Wilkomirski: História Falsificada (I)



A Síndrome de Wilkomirski: História Falsificada


por
WOLFGANG HEUER*



[Texto retirado de: Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, Edição Especial, n. 2, p. 35-47, 2006]




Resumo: A utilização da memória pela História nos remete à questão da confiabilidade, e, com isso, “ao voto de confiança” (Ricoeur) à testemunha. Em contraste com as formas usuais de tentar impedir ou impor a memória, o interesse público contemporâneo por depoimentos pessoais tem levado a muitos casos de falsificação da memória, entre os quais o mais famoso é a história de “Wilkomirski”. O presente artigo se dedica às formas atuais de autovitimização, procura entender por que a maioria dos historiadores falhou em reconhecer a falsificação, por que mentir traz mais vantagens do que dizer a verdade, e qual a função do julgamento crítico como pré-requisito para a confiabilidade.


Falsificações constituem um problema antiqüíssimo na História. Como escreveu Paul Ricoeur em sua conferência sobre “L’écriture de l’histoire et la représentation du passé”,1 há três razões possíveis para essas falsificações: primeiro, elas servem para impedir a memória; segundo, elas servem para manipular a memória; e, terceiro, elas servem para impor a memória.

Mas deve-se distinguir claramente entre duas coisas: lembrança e memória, por um lado, e História e representação histórica, por outro. No primeiro caso, na lembrança, trata-se de um processo individual, que também pode assumir uma dimensão psicossocial; no segundo caso – o da representação histórica –, trata-se de um processo mais distanciado e, ao mesmo tempo, mais político. Ricoeur volta sua atenção em especial para o primeiro processo – sem excluir o segundo.
Para exemplificar uma situação de impedimento da memória, ele chama a atenção para a tentativa de exclusão da memória descrita por Freud. Para mostrar a manipulação de memória, ele cita o direcionamento do relato individual através de omissões e de silêncios. E, finalmente, a imposição da memória ele enxerga no círculo familiar, onde a geração mais velha, através de seu relato sobre o passado, prescreve à geração mais nova a interpretação a ser dada à História. De fato, encontramos esses três tipos de falsificação também no plano da escrita da História ou da representação política: o silêncio sobre, ou a negação de um acontecimento; uma escrita da História guiada por interesses e, com isso, manipulada; e, finalmente, a representação oficial da história nacional. Essas falsificações na memória e na escrita da História não seriam tão freqüentes se o processo de compreender os acontecimentos não estivesse tão estreitamente vinculado a fenômenos da lembrança. Para Ricoeur, uma fenomenologia da lembrança se compõe da presença da memória, da mnêmê, e da busca pela memória, da representação ou anamnêsis.

A presença da memória, que é ao mesmo tempo imagem e reprodução da imagem, e a rememoração, que muitas vezes consiste num penoso buscar-nalembrança, oferece, estruturalmente, todas as possibilidades para modificações e para falsificações. Pois nem a memória nem a rememoração oferecem qualquer outra coisa que quadros imaginados. Como, neste caso, sempre é possível que ocorram enganos decorrentes da diferença entre realidade e sua reprodução, a tentação de produzir ilusões e de auto-iludir-se é igualmente grande.

Essa falta de nitidez estrutural não representa apenas um desafio para a pretendida exatidão da memória e das representações históricas, mas também uma tentação de se transitar dos fatos para a ficção. É por isso que urge responder àquilo que Ricoeur chama de “voto de confiança”: “Se a memória é um quadro imaginado, como não confundi-la com a fantasia, com a ficção ou com a alucinação? Assim, no início de um empreendimento que pretende levar da lembrança para a História está um ato de confiança em uma experiência que se pode entender como uma experiência primordial nesse campo, isso é, a experiência do reconhecer”.2

A partir deste ponto, gostaria de me dedicar a um fenômeno específico, qual seja o de um relato de vida conscientemente falsificado. Ele se apresenta como uma vivência autêntica e reivindica o
status de fonte histórica, que está na base de toda a escrita da História. No centro está o relato Fragmentos, de Binjamin Wilkomirski.
O sucesso dessa história inverídica nos remete às seguintes perguntas:
  • Por que a maioria dos historiadores falhou na sua avaliação?
  • Qual o papel exercido pelo contexto intelectual e cultural para o sucesso desse relato?
  • Qual a vantagem que a mentira tem sobre a verdade?
  • E, que papel exerce o voto de confiança, proposto por Ricoeur?

Histórias inverídicas

Nos últimos anos uma série de histórias de vida falsificadas apareceu no mercado. Assim, durante dois anos, podia ler-se na Internet o diário da teenager Kaycee Nicole, que relatava sua luta contra o câncer, até que morresse, em 2001. Milhares de leitores acompanhavam sua luta pela sobrevivência, mandavam-lhe cartas e presentes, lhe telefonavam e mobilizavam uma parcela crescente da opinião pública, até que, depois de sua suposta morte, uma investigação mostrou que Kaycee Nicole nunca havia existido. Ela fora uma invenção de uma dona de casa no Kansas.3

Em 1980, a jornalista americana Janet Cooke publicou no Washington Post a comovente história de um menino de oito anos, viciado em heroína. Marion Barry, o prefeito de Washington D. C. ficou tão comovido que mandou procurar o menino – mas, em vão. Apesar das dúvidas crescentes sobre a autenticidade da história, Janet Cooke recebeu o cobiçado Prêmio Pulitzer, que ela teve de devolver pouco tempo depois. Dez anos mais tarde, porém, os direitos de filmagem dessa história foram vendidos por 1,5 milhões de dólares americanos.4

Na Austrália, a autobiografia My own sweet time, da aborígine Wanda Koolmatrie despertou grande curiosidade, em 1995, tendo recebido um prêmio literário nacional para mulheres estreantes na literatura. Dois anos depois, descobriu-se que o livro não fora escrito
por uma mulher, mas sim por um homem – que não era aborígine, mas sim branco. Na mesma semana foi desmascarada mais uma falsificação, na qual apenas os papéis sexuais estavam invertidos: o festejado pintor aborígine “Eddie Burrup” revelou-se uma mulher irlandesa de 82 anos.5

No ano 2000, Paul Parks, de Boston, um negro defensor dos direitos humanos, já aposentado, recebeu o prêmio Raoul Wallenberg, da organização judaica B’nai B’rith, de Berlim, por seu destacado empenho humanitário. Ele e outros veteranos das forças armadas aliadas receberam esse prêmio por terem participado da libertação de campos de concentração, ao final da Segunda Guerra Mundial. Paul Parks esteve no primeiro tanque que entrou no campo de concentração de Dachau, perto de Munique. No filme The last days, de Steven Spielberg, premiado com um Oscar, Paul Parks relata sua história. Ela, porém, foi contestada por outros veteranos norte-americanos. Descobriu-se que durante a libertação de Dachau Paul Parks nem se encontrava na Alemanha, e sim numa base americana na Inglaterra. Parks contava sua história desde 1978, aparecendo, desde 1987, como cobiçado conferencista entre grupos judaicos e sobreviventes do Holocausto, tendo sido feito patrono do “New England Holocaust Memorial”, em Boston. Ele
foi um dos poucos defensores negros de direitos humanos que se interessou pela história judaica, e assumiu funções de mediador entre a população negra e a branca, na cidade de Boston, quando esta foi agitada por conflitos raciais.

Em 2005, foi noticiado que o presidente da Agrupación Amical Mauthausen, que congrega sobreviventes de campos de concentração, Enric Marcó, nunca esteve preso em qualquer campo de concentração. Durante 30 anos, o cidadão, que entrementes tem 84, viajou pelo mundo relatando as barbáries a que foi submetido no campo de concentração alemão de Flossenbürg. Na última vez, se apresentou no parlamento espanhol, por ocasião da rememoração dos 60 anos de libertação de Auschwitz. Marcó não foi preso em 1943 pela GESTAPO, na França, como membro da resistência francesa e deportado para o campo de concentração, como afirmara.
De fato, ele se apresentara, em 1941, como voluntário para ir à Alemanha, quando Franco, a pedido de Hitler, enviou trabalhadores especializados para a indústria bélica alemã. Marcó trabalhou até 1943 num estaleiro em Kiel, e depois regressou à Espanha.6

* Cientista político na Universidade Livre de Berlim; publicou trabalhos sobre Hannah
Arendt, sobre coragem cívica, sobre debilidades da democracia, entre outros; professor-
visitante em universidades brasileiras. E.mail: wolfgang.heuer@gmx.de.
A tradução do texto é de René E. Gertz.
1 RICOEUR, Paul. L’écriture de l’histoire et la représentation du passé. Annales, ano
55, n. 4, jul.-ago. 2000, p. 731-748.
2 RICOEUR, loc. cit., p. 723.
3 The short life of Kaycee. The Guardian, 28 de maio de 2001.
4 The story. Washington Post, 19 de abril de 1981, p. A12-A15. E: “Whatever happened
to ... – former Washington Post reporter Janet Cooke sold movie rights to the fictitious
story – of an 8-year-old heroin addict named ‘Jimmy’ for $1.5 million” (John Elvin –
Insight on the news, 24 de abril de 2000).
5 Another acclaimed “aboriginal” artist turns out to be white (Peter James Spielmann –
South Cost Today –
www.southcoasttoday.com/daily/03-97/03-17-97/b06ae053.htm).
6 “El presidente de las víctimas españolas em Mauthausen confiesa que nunca fue
preso de los nazis” (El Mundo, 11 de maio de 2005).

(continua)

Sobre Benjamin Wilkomirski podem ficar a saber mais aqui.