domingo, 23 de agosto de 2009
A Síndrome de Wilkomirski: História Falsificada (II)
(Continuação)
Wilkomirski
A história mais intrigante, porém, é a de Binjamin Wilkomirski, que publicou o livro Fragmentos. Nesse livro, o autor relata como chegou aos campos de concentração Majdanek e Auschwitz, sobreviveu ao extermínio, e como, depois da guerra, viveu num abrigo de crianças, até que, graças a uma organização humanitária, chegasse à Suíça. Ali viveu mais uma vez num abrigo de crianças, até que fosse adotado por um rico casal de médicos de Zurique. Em 1995, editores judeus publicaram na conhecida e influente editora Suhrkamp, da Alemanha, as memórias de Wilkomirski, as quais, em função dos detalhes e da brutalidade do relato, superavam tudo aquilo que se conhecia até então. Mesmo que o autor tivesse apenas três anos, na época dos acontecimentos, lembrava-se do assassinato do pai, no gueto, com uma clareza fotográfica: “Agentes uniformizados, vestindo botas, gritam com ele, o levam pela porta. Um grito de medo ecoa pela escadaria: ‘Atenção! Milícia leta!’. Portas batem. O homem é levado para baixo. Eu vou atrás; me grudo no corrimão e vou descendo. [...]. Colocaram o homem na parede, ao lado da entrada. Aos gritos, os uniformizados embarcam num automóvel estacionado na rua, gesticulam, agitam os porretes e deformam seus rostos numa expressão de ódio. Gritam sempre a mesma coisa, que soa como ‘acabam com ele! acabam com ele!’. O automóvel se põe em movimento. Acelera em direção à parede, em direção a nós. O homem continua imóvel, encostado na parede, perto de mim. Estou sentado o chão, entre a porta e a parede, os olhos voltados para ele. Ele baixa os olhos para mim e abre um sorriso. Mas, de repente, seu rosto se desfigura, ele o vira para o lado, levanta a cabeça, abre a boca, como se quisesse soltar um grito. Lá de baixo, contra a claridade do céu só consigo enxergar ainda os contornos de seu queixo e o chapéu, que resvala para trás. Nenhum grito ecoa de sua boca, mas um jato preto sai de sua garganta, quando o automóvel o imprensa contra a parede”.7
A criança também se lembra com a mesma exatidão das mulheres mortas no campo de extermínio: “Algo desperta minha curiosidade, mas a montanha de cadáveres continua ali, como sempre. Ou será que algo mudou de lugar? Estranho, mulheres mortas não podem mover-se! [...]. Mas algo se movimenta! A barriga se movimenta! Não ouso levantar e não consigo mais tirar os olhos dali. Fico olhando, incrédulo. De joelhos, vou me aproximando.
Que é que está acontecendo? [...]. Agora vejo a barriga toda. Numa enorme ferida lateral, algo está se mexendo. Me ergo, para ver melhor. Estico meu pescoço e, nesse momento, a ferida se abre, repentinamente, a tampa da barriga se levanta e um enorme rato ensangüentado, brilhoso resvala pela montanha de cadáveres. Outros ratos alvorotados saem do amontoado de cadáveres e fogem”.8
Enquanto todas as outras crianças dos campos de extermínio são mortas, Wilkomirski sobrevive. Primeiro, o campo de Majdanek, depois, um transporte ferroviário, incluindo um acidente, para Auschwitz-Birkenau, e, finalmente, também este último campo. No abrigo de crianças, na Suíça, por fim, seu nome é trocado de forma não esclarecida, e ele passa a chamar-se Bruno Grosjean e, depois da adoção, Bruno Dössekker. Ele estuda História e aprende a construir instrumentos musicais, vindo a trabalhar como professor de música. Aos 18 anos, conta sua história a uma amiga que vem da Letônia e passa a estudar intensamente a história do Holocausto. No início dos anos 1980, fica muito doente de um mal do sangue e afirma que se trata de uma conseqüência tardia das experiências médicas a que fora submetido em Majdanek. Sua segunda esposa dá testemunho sobre a forma em que as memórias traumáticas estão voltando. Ele procura uma terapeuta e também conhece o psicoterapeuta judeu Elitsur Bernstein, e ambos o incentivam a escrever sua história.
Na Neue Zürcher Zeitung, o pequeno livro foi louvado com substantivos como “densidade, imutabilidade e força imagética” e como “fardo do século”. O texto foi traduzido para nove línguas, Wilkomirski recebeu vários prêmios, entre os quais o “Jewish Quartely Literacy Prize”, da Grã-Bretanha, o “National Jewish Book Award”, dos Estados Unidos, e o “Prix Mémoire de la Shoah”, da França. Também a cidade de Zurique homenageou seu filho. Wilkomirski foi convidado para vários eventos, nos quais sua presençainvariavelmente abalava os ouvintes. Wilkomirski apresentou-se como alguém alquebrado, profundamente entristecido, que não conseguia mais ler ele próprio passagens de seu livro, mas alguém lia por ele, leitura acompanhada da execução de cânticos judaicos ao clarinete. Mas Wilkomirski não se preocupou só consigo mesmo. Ele queria ajudar outras pessoas. Juntamente com seu amigo Bernstein, apresentou em diversos congressos científicos um método terapêutico próprio. Através da combinação entre Psicoterapia e Ciência Histórica, esse método se propõe a despertar a memória da primeira infância, e com isso ajudar a todas aquelas pessoas que têm dúvidas sobre suas origens a esclarecer sua identidade. A seguir, ele começou a incluir outras pessoas em sua biografia e em suas apresentações públicas. Em Israel foi achado seu pai. O retorno do filho pródigo ficou registrado em imagens no filme “A lista de Vanda”.9
Entre as muitas cartas que Wilkomirski recebeu, achava-se uma de uma tal de Laura Grabowski, de Los Angeles. Também ela sobreviveu a Auschwitz, com a idade de quatro anos, e só em meados de 1997 conseguiu reunir forças para juntar-se a um “Holocaust Child Survivors Group”. Wilkomirski a encontrou em um evento no dia da memória do Holocausto de 1998, na sinagoga de Beverly Hills. Wilkomirski tocou clarinete, Grabowski piano. No final do encontro, declarou à BBC que ele a reconheceu.10
Ainda antes de o livro de Wilkomirski ser editado, houve dúvidas sobre a veracidade do conteúdo. O jornal suíço Weltwoche encarregou o escritor judeu Daniel Ganzfried a fazer uma investigação. Ele leu o livro, considerou-o totalmente inverossímil, e em muito pouco tempo descobriu a identidade de Bruno Dössekker.11
Simultaneamente, foi desmascarada a identidade falsificada de Laura Grabowski, a qual desapareceu. Não se tratava de sua primeira falsificação. Em meados dos anos 1980, ela se apresentara como Laura Stratford, com um livro-revelação intitulado Satan’s underground, na época em que se discutia nos Estados Unidos sobre uma suposta onda de maus tratos a crianças e de cultos satânicos. 12 No livro, relata como ela, aos seis anos, na qualidade de filha adotiva, fora entregue, por sua mãe, durante meses, a estupradores e depois deixada com um grupo que se dedicava à pornografia infantil. Ali, ela ficara presa durante semanas numa caixa juntamente com cadáveres de crianças, até que se declarasse disposta a participar do sacrifício ritual de crianças. Ela gerou três filhos, que foram assassinados diante dela durante a produção de filmes e em cerimônias rituais. Seu livro com essas histórias de horrores teve 140.000 exemplares vendidos nos Estados Unidos, e a nação chorava juntamente com ela em igrejas e na televisão. Quando as dúvidas sobre sua história começaram a aumentar, ela desapareceu, para reaparecer alguns anos depois, como sobrevivente do Holocausto. Seu verdadeiro nome é Lauren Willson.
7 WILKOMIRSKI, Binjamin. Bruchstücke: aus einer Kindheit, 1939-1948. Frankfurt:
Suhkamp, 1995, p. 9 e seg.
8 Ibid., p. 80 e seg.
9 “Reshimot Vanda”, de Vered Berman, Estado de Israel, 1995.
10 “Child of the death camps: truth & lies” (BBC-TV, 1999).
11 GANZFRIED, Daniel. Die geliehene Holocaust-Biographie. Die Weltwoche, n. 35, de
27 de agosto de 1998.
12 PASSANTINO, Bob & GRETCHEN; Trott, Jon. Lauren Stratford: from satanic ritual
abuse to Jewish Holocaust survivor. Cornstone, vol. 28, n. 117, 1999.
(Continua)
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