A Síndrome de Wilkomirski: História Falsificada
WOLFGANG HEUER*
Resumo: A utilização da memória pela História nos remete à questão da confiabilidade, e, com isso, “ao voto de confiança” (Ricoeur) à testemunha. Em contraste com as formas usuais de tentar impedir ou impor a memória, o interesse público contemporâneo por depoimentos pessoais tem levado a muitos casos de falsificação da memória, entre os quais o mais famoso é a história de “Wilkomirski”. O presente artigo se dedica às formas atuais de autovitimização, procura entender por que a maioria dos historiadores falhou em reconhecer a falsificação, por que mentir traz mais vantagens do que dizer a verdade, e qual a função do julgamento crítico como pré-requisito para a confiabilidade.
A presença da memória, que é ao mesmo tempo imagem e reprodução da imagem, e a rememoração, que muitas vezes consiste num penoso buscar-nalembrança, oferece, estruturalmente, todas as possibilidades para modificações e para falsificações. Pois nem a memória nem a rememoração oferecem qualquer outra coisa que quadros imaginados. Como, neste caso, sempre é possível que ocorram enganos decorrentes da diferença entre realidade e sua reprodução, a tentação de produzir ilusões e de auto-iludir-se é igualmente grande.
Essa falta de nitidez estrutural não representa apenas um desafio para a pretendida exatidão da memória e das representações históricas, mas também uma tentação de se transitar dos fatos para a ficção. É por isso que urge responder àquilo que Ricoeur chama de “voto de confiança”: “Se a memória é um quadro imaginado, como não confundi-la com a fantasia, com a ficção ou com a alucinação? Assim, no início de um empreendimento que pretende levar da lembrança para a História está um ato de confiança em uma experiência que se pode entender como uma experiência primordial nesse campo, isso é, a experiência do reconhecer”.2
A partir deste ponto, gostaria de me dedicar a um fenômeno específico, qual seja o de um relato de vida conscientemente falsificado. Ele se apresenta como uma vivência autêntica e reivindica o
status de fonte histórica, que está na base de toda a escrita da História. No centro está o relato Fragmentos, de Binjamin Wilkomirski.
- Por que a maioria dos historiadores falhou na sua avaliação?
- Qual o papel exercido pelo contexto intelectual e cultural para o sucesso desse relato?
- Qual a vantagem que a mentira tem sobre a verdade?
- E, que papel exerce o voto de confiança, proposto por Ricoeur?
Em 1980, a jornalista americana Janet Cooke publicou no Washington Post a comovente história de um menino de oito anos, viciado em heroína. Marion Barry, o prefeito de Washington D. C. ficou tão comovido que mandou procurar o menino – mas, em vão. Apesar das dúvidas crescentes sobre a autenticidade da história, Janet Cooke recebeu o cobiçado Prêmio Pulitzer, que ela teve de devolver pouco tempo depois. Dez anos mais tarde, porém, os direitos de filmagem dessa história foram vendidos por 1,5 milhões de dólares americanos.4
Na Austrália, a autobiografia My own sweet time, da aborígine Wanda Koolmatrie despertou grande curiosidade, em 1995, tendo recebido um prêmio literário nacional para mulheres estreantes na literatura. Dois anos depois, descobriu-se que o livro não fora escrito
por uma mulher, mas sim por um homem – que não era aborígine, mas sim branco. Na mesma semana foi desmascarada mais uma falsificação, na qual apenas os papéis sexuais estavam invertidos: o festejado pintor aborígine “Eddie Burrup” revelou-se uma mulher irlandesa de 82 anos.5
No ano 2000, Paul Parks, de Boston, um negro defensor dos direitos humanos, já aposentado, recebeu o prêmio Raoul Wallenberg, da organização judaica B’nai B’rith, de Berlim, por seu destacado empenho humanitário. Ele e outros veteranos das forças armadas aliadas receberam esse prêmio por terem participado da libertação de campos de concentração, ao final da Segunda Guerra Mundial. Paul Parks esteve no primeiro tanque que entrou no campo de concentração de Dachau, perto de Munique. No filme The last days, de Steven Spielberg, premiado com um Oscar, Paul Parks relata sua história. Ela, porém, foi contestada por outros veteranos norte-americanos. Descobriu-se que durante a libertação de Dachau Paul Parks nem se encontrava na Alemanha, e sim numa base americana na Inglaterra. Parks contava sua história desde 1978, aparecendo, desde 1987, como cobiçado conferencista entre grupos judaicos e sobreviventes do Holocausto, tendo sido feito patrono do “New England Holocaust Memorial”, em Boston. Ele
foi um dos poucos defensores negros de direitos humanos que se interessou pela história judaica, e assumiu funções de mediador entre a população negra e a branca, na cidade de Boston, quando esta foi agitada por conflitos raciais.
Em 2005, foi noticiado que o presidente da Agrupación Amical Mauthausen, que congrega sobreviventes de campos de concentração, Enric Marcó, nunca esteve preso em qualquer campo de concentração. Durante 30 anos, o cidadão, que entrementes tem 84, viajou pelo mundo relatando as barbáries a que foi submetido no campo de concentração alemão de Flossenbürg. Na última vez, se apresentou no parlamento espanhol, por ocasião da rememoração dos 60 anos de libertação de Auschwitz. Marcó não foi preso em 1943 pela GESTAPO, na França, como membro da resistência francesa e deportado para o campo de concentração, como afirmara.
De fato, ele se apresentara, em 1941, como voluntário para ir à Alemanha, quando Franco, a pedido de Hitler, enviou trabalhadores especializados para a indústria bélica alemã. Marcó trabalhou até 1943 num estaleiro em Kiel, e depois regressou à Espanha.6
* Cientista político na Universidade Livre de Berlim; publicou trabalhos sobre Hannah
Arendt, sobre coragem cívica, sobre debilidades da democracia, entre outros; professor-
visitante em universidades brasileiras. E.mail: wolfgang.heuer@gmx.de.
A tradução do texto é de René E. Gertz.
1 RICOEUR, Paul. L’écriture de l’histoire et la représentation du passé. Annales, ano
55, n. 4, jul.-ago. 2000, p. 731-748.
2 RICOEUR, loc. cit., p. 723.
3 The short life of Kaycee. The Guardian, 28 de maio de 2001.
4 The story. Washington Post, 19 de abril de 1981, p. A12-A15. E: “Whatever happened
to ... – former Washington Post reporter Janet Cooke sold movie rights to the fictitious
story – of an 8-year-old heroin addict named ‘Jimmy’ for $1.5 million” (John Elvin –
Insight on the news, 24 de abril de 2000).
5 Another acclaimed “aboriginal” artist turns out to be white (Peter James Spielmann –
South Cost Today –
www.southcoasttoday.com/daily/03-97/03-17-97/b06ae053.htm).
6 “El presidente de las víctimas españolas em Mauthausen confiesa que nunca fue
preso de los nazis” (El Mundo, 11 de maio de 2005).
(continua)
Sobre Benjamin Wilkomirski podem ficar a saber mais aqui.
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